Ceni exclusivo: 'Treinei 15 mil faltas antes de arriscar a primeira num jogo'

Os pés e as mãos de Rogério Ceni, duas armas mortais (Foto: Marcos Ribolli / Globoesporte.com)

O goleiro são-paulino Rogério Ceni - agora com 100 gols - fala do seu lado artilheiro. Confira também os vídeos.
Quando Rogério Ceni bateu a sua primeira falta em um jogo de futebol, em 1997, muita gente pode ter achado que o goleiro estava metendo os pés pelas mãos. Hoje, 14 anos depois e com 100 gols marcados, todos têm certeza que ele é craque seja com os pés, seja com as mãos.
Quando estava perto da marca centenária, o capitão tricolor concedeu uma entrevista exclusiva no Centro de Treinamento da Barra Funda, na zona oeste da capital paulista. Num papo de quase 40 minutos, o goleiro falou do seu lado artilheiro. Rogério é grato até hoje aos técnicos que o incentivaram – principalmente Telê Santana, que o fazia chegar mais cedo aos treinos, e Muricy Ramalho, que lhe deu carta branca para bater uma falta numa partida – e até a quem o proibiu – Mário Sérgio foi o único que não deixou.

Durante a conversa, Ceni cita um número impressionante. Antes de executar sua primeira cobrança num jogo, ele tinha treinado muito. Mas muito mesmo...
- Eu chegava sempre antes dos demais e era o último a ir embora. Treinei muito. Eram de 2.500  a 3 mil faltas por mês. Antes de colocar em prática num jogo, treinei mais de 15 mil faltas nesses campos aqui - fala, apontado para os três gramados do CT.
Acompanhe abaixo os principais trechos da entrevista. E clique nos vídeos para assistir também.

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Como surgiu a vontade de bater falta?

ROGÉRIO CENI: Em 1996, o São Paulo não fazia gols de falta. Eu falava pro Zetti bater, mas ele não queria. Aí disse pra ele que eu ainda iria fazer um gol de falta pelo São Paulo ou por outro lugar. E comecei a treinar. Em 97, quando o Muricy (Ramalho) me liberou para tentar as cobranças, fiquei feliz. Achava que não sairia da fase de treinamentos, e ele me possibilitou bater nos jogos.

Quantas cobranças em média você treinava?
No início eu batia entre 2.500 e 3 mil faltas por mês nos treinos. Antes da minha primeira cobrança em um jogo cheguei a cobrar 15 mil nos treinamentos.

Você fez gol de pênalti, de falta, até de bola rolando. Qual o gol que não fez e gostaria ter feito?
Teve um lance em que a bola passou muito perto, em um jogo contra o Paysandu, no Brasileiro. Eu chuto, ela vai na barreira, volta, e pego de voleio. Ia entrar, mas ela resvala em um adversário e sai. Seria um gol diferente. Lógico que eu queria ter feito um driblando todo mundo, mas nunca vai acontecer.

Ceni com folhagens ao fundo (Foto: Marcos Ribolli / Globoesporte.com)

Faz falta não ter marcado um gol pela Seleção Brasileira?

De maneira nenhuma. Nada me faz falta na Seleção. Foi um momento bacana que vivi, não tão intensamente como no São Paulo, mas foi legal, conheci muita gente, aprendi muita coisa, vi como tudo funciona. Bati uma falta contra a Colômbia (em 2000), mas o zagueiro tirou na linha. Na cobrança, brinquei com o Rivaldo, que estava na bola comigo. Pedi: "deixa pra mim essa aí, você já está consagrado". Mas o zagueiro acabou tirando.

O que você leva em consideração quando bate uma falta?

O principal é a distância da barreira. Se o juiz a mantém na distância certa, dá para saber como arriscar. O número de jogadores nela também influencia. A cobrança muda se está chovendo ou está seco. Depende do vento, se ele contra preciso calcular a força.

VIDEO 02 EM BREVE

Costuma estudar o goleiro adversário antes dos jogos?

Não estudo tanto, mas se a falta é mais longe, daquelas que eu não bato, eu presto atenção na movimentação do goleiro, se ele sai antes ou não, se toma gols no canto. Há uma porção de fatores que, naqueles dez segundos entre a armação da barreira, o apito do juiz e a batida, você desenvolve de forma automática: vê distância, vento, altura, posicionamento, gramado, chuva...

Você leva alguma vantagem por ser goleiro? Pois sabe como a bola chega para seu adversário...
O pênalti é muito mais calma e tranquilidade. Não pode haver ansiedade, isso conta muito mais do que a parte técnica. Tem goleiro que vai para um lado e para o outro. Você tenta induzir ao erro. Enfrenta um, tenta induzir, ele erra o canto, e na próxima vez aparece o jogo psicológico: ele acreditar que você vai repetir, ele tentar imaginar o que você fará.

O que te falta na carreira?

Não falta nada até hoje, mas amanhã faltará. A partir de amanhã preciso mostrar que posso ganhar, ser campeão, vencer o próximo jogo, o próximo campeonato. Se eu achar que tudo está bom as coisas não progridem mais. Quanto mais você conquistar, melhor. Não estou satisfeito com o que fiz, quero mais, quero ganhar o próximo.

close nos olhos de Rogério Ceni (Foto: Marcos Ribolli / Globoesporte.com)

Te incomoda quando há alguém no grupo que não tem essa postura?

Incomoda a todos. O futebol hoje é diferente. Há muito apego a quanto o atleta custou, quanto pode render ao ser vendido. Hoje se passa muito a mão na cabeça. O que manda no futebol é a parte financeira. Você tem que fazer de conta que não vê e tentar contornar. Antigamente as coisas eram mais resolvidas entre jogador e treinador, mas hoje não. Há todo um processo, o clube não pode ter perda. Mas a maioria dos profissionais atualmente é dedicada, de chegar na hora certa, é difícil ter aquele que atrasa ou falta ao treino. Antigamente isso ocorria mais e era natural, a pressão hoje é maior.

Quais foram os técnicos mais importantes na sua carreira?

Não sei quantos técnicos tive. Devo muito ao Telê, que é um mito no São Paulo pelos títulos e pela pessoa que era: um cara sério, duro, mas justo. Aí veio o Darío Pereyra, o Muricy, que depois voltou e foi um baita cara vencedor. Tive o Levir Culpi que adorava, o Nelsinho (Batista) foi fantástico, me ajudou muito, o Paulo (César Carpegiani), o Vadão, o Oswaldo de Oliveira... O São Paulo sempre contrata caras de bom caráter, como o Paulo Autuori e o Leão, que era mais duro, mas era o nome certo para aquele momento.

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Chilavert já batia faltas, mas depois de você surgiram outros goleiros-artilheiros. Sente orgulho do legado?

Eu nunca tinha visto o Chilavert fazer gol de falta. Na década de 90 não tinha canal fechado de TV, era difícil ver Campeonato Argentino. O primeiro gol dele que eu vi foi na decisão da Libertadores em 94. Foi a primeira vez e não foi por isso que comecei. Comecei porque gostava. Mas hoje eu vejo que alguns batem e fico feliz. Não é uma necessidade para se tornar um grande goleiro. Mas é um ingrediente legal. O futebol é um jogo, um espetáculo, os torcedores vão pra ver coisas bacanas, vão pra ver o diferente.


Equipe do Globoesporte.com entrevista Ceni no CT do São Paulo (Foto: Marcos Ribolli / Globoesporte.com)
Pode dar conselhos aos goleiros que decidirem seguir seu caminho?

Os do São Paulo observam mais. Às vezes antes de eles pedirem eu levanto e falo "a bola tem que rodar desse jeito". Mas cada um tem um estilo. O Leo (Leonardo) é o que bate mais semelhante ao meu jeito. Sei que lá em Cotia os meninos da base também treinam cobranças.

Tem algum goleiro que não tomou gol seu, mas você gostaria de ter feito?

Não penso no outro. Faço o gol pelo meu time e não por demérito ao adversário. Não quero dizer que sou melhor que ninguém.

Sofrer gol de outro goleiro é um desmerecimento?

Não, desde que não seja falha minha. O goleiro é um goleiro. O Chilavert bateu várias faltas em mim, mas fez um gol de pênalti em um 3 a 3 entre São Paulo x Velez na Argentina. Durante os 90 minutos foi o único que sofri, e foi uma pancada forte. Esperei, mas não peguei.

Rola provocação dos goleiros quando você vai arriscar um gol?

Eles brincam e dizem "pô, vai fazer gol em mim?" ou "chuta pra fora". Mas provocação nunca teve. Nunca tentaram fazer nada.

Toda vez que você vai tentar uma cobrança no campo do adversário sabe que corre o risco de ser surpreendido, o que já aconteceu duas vezes. Era um risco calculado?

Sim. O gol do Roger (São Paulo 4 x 3 Fluminense, pelo Rio-São Paulo de 2002) foi ilegal porque tínhamos quatro jogadores em posição irregular: três no círculo central e outro no campo deles. Não seria um gol. O França estava na bola, mas ficou desatento. Foi até bom porque foi um jogaço: fiz o 4 a 2, ele fez 4 a 3. Para a beleza do espetáculo foi um gol bacana, que gostei de tomar. Naquele dia o Gustavo Nery me deu uma gravata na hora da comemoração e eu não conseguia voltar pro gol. No jogo contra o Santos (São Paulo 1 x 2 Santos, pelo Brasileirão de 2005) o lance se originou em uma falta mal batida., que foi na barreira e voltou no Cicinho. Mas como veio forte ele não conseguiu dominar e ela escapou. Ai o Fabão recuou demais. O posicionamento correto seria ir no combate, aí já estaria antes da linha do meio-campo. Era para interpretar a regra com frieza. Se ele vai no cara, faz falta ou obriga o mesmo a tocar a bola para outro, que estaria impedido.

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Em quem você se espelhou pra repor a bola com precisão?

No meu primeiro ano trabalhei com o Gilmar (Rinaldi), que estava no último ano dele. Ele tinha uma  reposição muito boa. O Alexandre, que faleceu em 92, tinha ótima reposição, e fui aprendendo. O Zetti estava aqui também. Todos treinavam diariamente, um repunha pro outro. Quando eu comecei, achei que jamais acertaria um cara a 50 metros de distância. Fui repetindo, e hoje é um movimento natural e os goleiros já começam uma jogada na reposição. Antes era só aquele balão pro alto.

No dia 7 de setembro você vai completar 21 anos de São Paulo e sabe o peso que isso tem para a torcida.
É o último romântico do futebol?

Não me sinto assim, mas, se pra mim é importante estar aqui, imagino que pro torcedor, que é apaixonado pelo clube, também seja. A torcida brasileira sofre de uma carência relativamente grande de ídolos, apesar de o Brasil estar com a moeda fortalecida e trazendo gente de volta. Mas eu acho que é uma marca relativamente impressionante pelo tempo e pelo número de jogos. Eu me machuquei pouco, fiquei poucas partidas fora. Isso é legal pro torcedor. Aquele mais velho, que viveu as décadas de 50 e 60, sabia de cor os 11 titulares do time, que raramente mudava. Mas hoje não é assim. É um orgulho para o torcedor ter esse apego e essa identificação com determinados atletas.

O Raí diz que você é o maior ídolo da historia do São Paulo. Concorda?

O São Paulo é um clube com mais de 70 anos, e cada jogador foi importante para a sua época. Talvez uma pessoa de 80 anos possa ter outros ídolos como referência. Mas acho que faço parte de uma fatia de jogadores que são especiais no clube. O Raí é um deles. Para mim, ele é o maior jogador da década de 90 no São Paulo. Aí vamos buscar Pedro Rocha, Roberto Dias, Careca, cada época tem os seus. Não me considero o maior ídolo. Sempre via o Raí e pensava: "como vai ser quando ele parar?" e "teremos outro Raí?" Ele parou, e nós conseguimos ganhar Mundial, Libertadores e Brasileiro. Cada um tem seu tempo. Eu vou ficar marcado na memória do torcedor por essa ultima década, esses últimos dez ou 15 anos. Mas seria impossível responder quem é o maior. É muito abrangente. Faço parte de uma galeria de ídolos que escreveram a história do clube.

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Aos 38 anos, a carreira está chegando ao fim. Está preparado?

Jogo mais quatro ou cinco anos, e aí tudo acaba (risos). Eu procuro não pensar. Sei que deveria, mas hoje prefiro viver dia após dia, ver se consigo fazer o São Paulo vencedor. Não quero viver hoje o que vai acontecer daqui a dois anos. Vai ser um momento muito complicado, é uma vida toda nessa profissão. Não é que vou mudar de empresa, eu vou mudar o que escolhi para a minha vida. Espero estar preparado e entender da melhor maneira possível. Mas acordar o dia seguinte vai ser uma experiência difícil.

Close dos pés de Ceni (Foto: Marcos Ribolli / Globoesporte.com)

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